Deus foi até a maestria, para falar com o lúcifer.
Lúcifer encheu-se de coragem e prometeu a si mesmo que não ia ter medo de dizer o que era pra dizer. Claro que o resultado foi uma quantidade absurda de ironia destilada e poucas frases objetivas, mas o efeito desejado foi alcançado.
- E aê, chefão! – cumprimentou o lúcifer.
- tu não vais cumprimentar os anjos? Eles querem saudar-te.
- ah, não tô a fim não.
- o que foi aquilo hein, Augustus?
- Aquilo o quê, hein bicho?
- aquele seu surto, ora.
- ah, sei lá, acho que eu estou cansado dessa mesmice.
- a angélia está atordoada!
- que bom.
- mas isso não é o pior!
- E que é o pior?
- aquele seu discurso! Tu não me disseste que faria aquilo!Porque inventaste aquela pantomima? Tu não estás... botando tuas asas de fora, não é?
- Só pra abrir a cabeça.
- com que propósito?
- para que aconteça a revolução!
- estás insano, ó Serafim?
- não é isso barão... E que eu estive pensando...
- anjos não pensam!
- É o que eles pensam. E eu não sou só um anjo, eu sou seu braço direito, não é? O seu serafinzão... E nós dois sabemos que esse papo de anjos acéfalos não é verdade. É como dizer que a massa é burra.
- o que queres dizer?
- você sabe que eu concordo plenamente com as suas idéias, né?
- E porque não concordaria?
- Ué? Porque o senhor é um déspota dominador. Mas eu estou do seu lado. E é por isso que eu concordo com o senhor. O senhor leu a última enquete do Fabríciel?
- Claro. Convivência intra-angelical.
- Isso. Como é que o senhor pretende lidar com isso?
Deus responde após um breve silêncio.
- ainda não pensei sobre isso.
- mas a angélia confia que o senhor já pensou
- eu não disse que tinha resposta pra isso. Que pensem. Estão errados.
- pensei que anjos não pensassem.
Onde é que você quer chegar afinal, Serafim?
- sinceramente, lorde. Será que o senhor perdeu sua onisciência? Intrigas entre anjos... Um novo mundo além desse... Concertos esquisitos com discursos libertários... O senhor está à beira de ser destronado!
- destronado? Tu estás insano, Augustus. Nunca ouvi tais blasfêmias!
- o senhor nunca ouviu blasfêmias antes.
- Sejais mais claro. Não compreendo onde quereis chegar.
- estou falando de fazer uma revolução.
- contra o que?
- contra o senhor.
- e porque eu ia querer fazer uma revolução contra mim mesmo?
- Porque o senhor deve ser desmascarado!
- A música deve tê-lo embriagado. Desmascarar-me do que? E para que?
- Para o seu próprio bem, ora?
- Deus fitou por algum tempo. Sentou-se na cadeira de fronte de lúcifer, do outro lado da escrivaninha.
- maestro, quais são as suas maquinações dessa vez. Já vi que tens algo de mirabolante sob suas aréolas. E deve ser coisa das grandes.
- das maiores que tu podes imaginar. Então vamo lá, Monsenhor. Vamo fazer uma análise completa da atual situação etérea.
- Pois bem.
- curte. Segundo as pesquisas do meu amigo Fabríciel, a angélia está insatisfeita com algo. Afinal, eles ficam intrigados com algumas reflexões rápidas sobre Sua Deidade... Isto é... Claro que minhas respostas sempre foram favoráveis a Sua Deidade.
- É, eu sei.
- Claro que sabe. E alguns amigos meus foram na minha onda. E o que ocorre é o que se vê. Esses nossos rápidos e desvalidos questionamentos foram mal compreendidos, mal interpretados pela angélia, que criou uma imagem errônea, sabe, sobre eu e meus amigos. O senhor sabe como esses anjos têm a cabeça fechada, afinal eles foram programados para isso... Quero dizer... Nasceram pra isso...
- E daí, Serafim?
- Como e daí? Acho melhor o senhor consultar esse negócio da onisciência, pois pode ser um problema sério...
- Augustus! Estás te exaltando!
- E é difícil não me exaltar. Eu estou tentando cumprir a minha função de protegê-lo, de antever as coisas. Sejamos francos. Eu sou seu “homem do presidente”. O senhor não está enxergando com clareza. o seu terceiro olho deve estar míope. Começa por um mal entendido entre os anjos, daqui a pouco uma revolução espontânea e pimba! O senhor perde o trono! Os anjos tomam o poder!
- Mas a sua intenção não é justo a de me desmistifica? Qual é a diferença!
- Nada a ver!
- mas tu disseste isso há poucos instantes!
- disse não.
- Disse sim.
- não disse não.
- DISSE AUGUSTOS!
- é, disse.
- disseste ou não disseste augusto?
- disse, mas não foi isso o que eu quis dizer. Tente compreender. Se nós não tomarmos uma providência, logo os anjos vão começar a perceber. E se eles perceberem, PÁ! Você perde todo o poder sobre eles e aí eles vão se levantar. Eles já estão prestes a se aperceberem das situações. É irreversível!
- O que quereis dizer?
- Ora, senhor! Quero dizer que a revolução vai acontecer de qualquer jeito! É só questão de tempo.
- Desse jeito parece que você está desejando isso.
- Ah é? E quando os anjos descobrirem que o senhor vai criar um outro mundo com outros seres que pensam, tem livre arbítrio e ainda vai mandar nos pobres anjos?
- Como você sabe disso? Isso é muito confidencial... Eu ainda não divulguei...
- Ora, senhor... Por quanto tempo o senhor acha que ia conseguir esconder isso do seu olho direito. Além do mais isso não importa muito. O que eu sei é que o senhor pretende conceder o livre arbírio aos habitantes do “Mundo Novo, não é isso”?
- É... é isso mesmo.
- Sendo assim eles não nascerão como nós, anjos, que já surgimos sob a sua doutrina.
- onde você aprendeu a falar assim? Eu sei que Você tem os olhos abertos, mas...
- Não me deixe perder a linha de raciocínio... Os anjos, ao descobrirem que existe um ser que é livre, vão perceber que também podem ser livres, junte os fatos... Os últimos acontecimentos não vão passar batidos nem pelos anjos. A tendência é de que suas idéias vigentes venham à falência, e até de que outras idéias sejam aceitas. Afinal os “serezinhos” que habitarão o “Mundo Novo” se julgarão livres e surgirá todo tipo de doutrina, e eu não me admiraria se alguém duvidasse da sua própria existência. Aí os anjos ainda juntam que serão subjugados pelos seres novos e não dará outra: a revolta vai contaminar anjo por anjo. Daí decorre que o senhor precisa de um modo de difundir suas idéias no Mundo Novo e manter os anjos em ordem cá em éter.
- Tu podes ter razão, Augustus... Poderíamos pensar numa maneira de resolver as duas questões...
- Javeh, Javeh... Até parece que o senhor não conhece esse seu maestro... A gente não precisa pensar em nada porque eu já pensei em tudo aqui na minha cachola.
- E no que tu pensaste, Augustus...
- M’lord, é uma empreitada muito promissora, mas nós teremos de nos valer de alguns artifícios enganosos...
- Mentir?!
- É. Mas por uma boa causa. O senhor já fez isso antes, não...
- Lúcifer...
- Não me deixe perder a linha do raciocínio. Como o senhor pode perceber, a revolução é inevitável, certo?
- É...
- Então nós chegamos ao ponto pelo qual o senhor ficou tão curioso e ouriçado: por que afinal nós deveríamos fazer uma revolução para te desmascarar. Mas acompanhe o meu raciocínio: se a revolução vai acontecer de qualquer jeito, não é melhor que ela seja do jeito que nos queremos? Ou, que seja, que nos traga alguma vantagem que compense as perdas? Daí decorre que é melhor nós mesmos fazer a revolução! O povo vai querer uma reforma, e se alguém se levantar, todos o seguirão. Então que se levante alguém que está do nosso lado! Assim nós podemos moldar a revolta popular ao nosso gosto. Conduzir os rebeldes até o lugar que nós desejamos.
- Que lugar?
- GRANDE REVOLUÇÃO! Metade dos anjos descobre que o senhor é um manipulador! Querem uma reforma! Metade dos anjos acha isso uma infâmia! A angélia fica polarizada. não se pode agradar aos dois pólos, todos querem um posicionamento, os rebeldes estão dispostos a tomar medidas drásticas. O que o senhor faz?
- eu tentaria chamar os rebeldes para o arrependimento, chamá-los-ia para o caminho das minhas verdades e os acolheria de novo.
- Certo. Mas eles se recusam. E aí?
- Eu insistiria.
- Tá. Mas eles se recusam veementemente.
- Eu lutaria para os convencer, e até lá ignorava seus apelos, mandava-os para o ermo até que eles convencessem-se de que é melhor ir de encontro as minhas regras.
- não, m’lord!Você expulsa os rebeldes!
- e no que é que isso dá?
- Ah, m’lord... Acho que eu sou mais onisciente do que você...
- Essa piadinha já tá ficando sem graça.
- E o senhor percebeu agora ou antes mesmo de acontecer? Mas siga meu raciocínio. Minha antevisão... Os tais serezinhos, como se chamam?
- Humanos.
- Humanos... Pois bem. Você quer experimentar o livre arbítrio com eles. Mas como eles serão livres se eles vão ter que seguir o seu caminho?
- Acontece que... Eu não deixarei eles me conhecerem. Não pessoalmente.
- Tá bom. Então tá lá o povo na terra, os serezinhos, e chega alguém dizendo: aí galera, vamos seguir essas leis aqui e cultuar esse cara que vocês não podem ver.
- Esse é o plano. O que há de errado?
- E daí? E daí que vendo como suas leis são sacrificiosas e não vendo motivo aparente para segui-las, vendo como teriam de abdicar das coisas prazerosas, iam abandonar logo esse caminho. Quer dizer, isso se eles não achassem de cara que o cara que dissesse isso tava querendo enganá-los.
- E o que vossa maestria sugere?
- Boa pergunta, m’lord. Como fazer os seres inferiores seguirem o bem... Primeiro responda-me uma pergunta não menos interessante. O que eu disse que desvia os seres do caminho adequado?
- O... O sacrifício... não?
- E porque eles não gostam de sacrifícios?
- ãn... por que eles são sacrificiosos?
- Humm... O senhor tá bem humorado hoje, hein? não é santa Maria mas está cheio de graça hein?
- O que vc sabe sobre santa Maria, hein?
- Nada. Mas o Devana colocou isso só pra não perder a piada, afinal não é sempre que alguém vai poder falar isso com deus.
- Mas continue seu raciocínio.
- Claro. Eles não gostam do sacrifício porque é ruim. Então como podemos fazê-los buscar o sacrifício?
- Não sei.
- Se eles acharem que vão passar um período na terra e depois, dependendo do seu desempenho, vai para algum outro lugar onde encontrará um sacrifício maior do que a lei ou um benefício maior do que o prazer.
- Muito bom, maestro. Genial!
- E onde é que entra a revolução em que tu queres me “desmascarar”?
- Muito bem. O senhor não pode simplesmente enganar os seres humanos, na frente dos anjos. O senhor tem que ter um álibi, ou melhor, os anjos tem que achar que o senhor não está enganando os seres, eles tem que achar que é tudo verdade.
- muito fácil. É só eu falar pra eles como eu desejo que seja a partir de agora e pronto.
- claro que não, m’lord! O senhor ia cair totalmente no descrédito. Ia ser um caos inominável.
- mas porque, Augustus?
-Ora, m’lord. O senhor não pode sair assim inventando regras de uma hora pra outra, sem o mínimo pudor. Ia parecer meio falso, porque o senhor mudariaalguma coisa? Afinal, vivemos num mundo perfeito, sem problemas nem nada. Tudo está no lugar.
- Logo, o senhor precisa de algum fator que esteja externo ao senhor. agora veja como tudo se encaixa com perfeição: Eis que surge lúcifer e mais um bando de anjos que acham que o senhor é um monstro dominador. Os anjos se sindicalizam e querem mudanças. O senhor fala que se a gente quiser mudanças, a gente vai ter mudanças, manda todos nós pr’uma terra de sofrimento, dor, tarárá,sei lá, algo tipo... choro e ranger de dentes saca? Algo assim... e nós habitaremos por lá, aí o senhor diz que vai criar um mundo novo onde vai botar seres que serão a prova de que o senhor é soberano e pode ser adorado até por seres conscientes, e desses seres, quem não for do bem vai viver na nossa terra e sofrer das nossas dores, os bons vão ficar de boa no céu, tipo numa terra que emana leite e mel.
- EI... essa frase foi boa maestro. isso soa bem...
- Obrigado, senhor. Aí o senhor condena o resto dos anjos que ficaram a serem servos dos seres humanos por eles terrem sido obtusos, tudo se ajeita de novo, o mundo volta a ficar perfeito e coisa e tal.
- Estupendo! Deus levanta de um pulo quando Lú termina, mas depois se contém. Muito bom. muito bom mesmo. Mas como tu sabes tanto sobre o mundo novo?
- Ora m’lord. Eu não virei maestro só porque o senhor puxa meu saco.
Deus balança a cabeça como quem diz, superiormente: ho, ho, ho, mas que garoto espirituoso... Mas o que disse de fato foi: tu até pareces criação minha, maestro.
E lúcifer dá uma risadinha como quem disfarça o seguinte pensamento: humpf! Muleque!
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