domingo, 1 de fevereiro de 2009


Assim chegou o momento do sarau. O sarau acontecia sempre um breve período após o grand’espetáculo. Os anjos levavam apresentações variadas. Cada qual podia apresentar o que quisesse. mas geralmente faziam algum discurso teoapologético, ou, propriamente dizendo, teopagativo-de-pau.

Assim, ressoou por toda a éter o enorme sinal. O primeiro dos três sinais.

Os anjos se dirigiam à subcâmara do anfiteatro.

Alguns carregavam harpas debaixo do braço, outros traziam aparatos de figurinismo, e outros não traziam nada. Aos poucos a subcâmara foi sendo ocupada. Gabriel, com aquele falso e expansivo carisma, declarou:

- angélia, vamos dar início ao sarau. Todos os anjos poderão apresentar o que quiserem, basta aproximar-se da área de convergência das atenções, o nosso ACA.

Como o gabriel as vezes falava embolado, os anjos mais do fundo não escutavam direito:

- o quê?

- o aco.

- como é?

- alco, moço.

- Ah tá, o palco.

- quem será o primeiro a ir pro palco?

Do meio do público vem um anjo com uma harpa. Gabriel puxa os aplausos. Os outros o imitam.

O anjo se apresenta brevemente, e diz:

- Música para regar a alma. Em homenagem ao mestre Augustus – e aponta para lú – e que ela nos inspire e nos inunde de bons sentimentos. Afinal, que outro tipo de sentimentos poderíamos ter?

O anjo começa a dedilhar a harpa.

Lúcifer faz pouco caso. Odeia paga-paus. Até quando pagam pau pra ele.

Cochicha com Fabriciel:

- Acho que vou começar por este palhaço.

- começar o que, homem?

- o mote é esse: vou confundir cada anjo que se candidatar a louvar. Talvez role um discurso, e o que ocorre: você e a galera vão começar a fazer zuada, como se estivessem incentivando, primeiro uns poucos, depois mais uns, para que os outros se sintam a vontade para fazê-lo também. Igual filme da sessão da tarde sacou? Depois eu te explico. Aí vocês começam a inferí-los com perguntas também, e aí a gente faz um bafafá no sarau.

- massa, lú.

O anjo tocador de harpa dedilhava os últimos acordes de seu harpejo.

A angélia olhava com aquele arzinho de supra-admiradores de música, com as pálpebras semi-cerradas, fazendo biquinho e balançando a cabeça feito lagartixa.

Com um sorriso de satisfação no rosto, o harpista discursou ao terminar sua música:

- E louvado seja o nosso senhor.

Um amém ressoou unissonamente pela subcâmara.

- a música nos inspira, enche-nos de vontade de dizer quantos améns nós conseguirmos, pois o nosso senhor é a verdade absoluta.

Lúcifer cutuca Fabríciel com as asas.

- a música é a mais nobre manifestação da paz de Deus. A música nos abastece, nos alimenta.

Antes que se possa pensar qualquer coisa, a música era de fato o alimento da angélia. Não é modo de dizer, não. A música nutria-os, movia o seu metabolismo. Metafísica e espiritualmente, é claro, mas de fato o processo espiritual e metafísico era químico por essência.

- A musica rege o nosso espírito...

Era o mote que o maestro esperava. Levantou-se d’um pulo.

De fato, anjo, porém de forma muito menos positiva do que você acredita.

Fabriciel ria com o cantinho da boca.

O silêncio espalhou-se como uma onda provocada pelo espanto. Não exatamente o espanto, mas a perplexidade. Não que o lúcifer tivesse dito nada muito agressivo, não, mas pelo fato de ele ter dito algo de diferente, ter interpelado o outro. Que quereis dizer, maestro? – respondeu o anjo, também perplexo, ou melhor, ele não tinha entendido mesmo.

- quero dizer simplesmente que o nosso sagrado e imaculado alimento pode ser não só uma fonte de manutenção metabólica mas uma forma de ditar nossas atitudes.

O harpista, que sentia-se meio ofendido pela atitude daquele a quem ele e todos os outros que se identificavam com a música chamavam de mestre, e a quem o harpista acabara de prestar uma homenagem um tanto quanto baba-ovo-paga-pau levantou as sombracelhas, enrugando a testa, e disse:

- não entendo, mestre.

No mais profundo do seu íntimo, deus sentia-se meio enciumado com esse tratamento de respeito hierárquico para com lúcifer.seu ego não permitia que outro ser fosse tão ovacionado. Mais tarde se verificaria que esse ciúme seria um fator determinante para os rumos que a forjada revolução tomaria.


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